— Que eu seja feliz? perguntou Isabel arrebatadamente.
— Sim, respondeu a menina abraçando-a e falando-lhe baixinho ao ouvido; que o ames a ele e a mim também.
Isabel ergueu-se pálida, e duvidando do que ouvia; Cecília teve bastante força para sorrir-lhe com um dos seus divinos sorrisos.
— Não, é impossível Tu me queres tornar louca, Cecília?
— Quero tornar-te alegre, respondeu a menina acariciando-a; quero que deixes esse rostinho melancólico, e me abraces como tua irmã. Não o mereço?
— Oh! sim, minha irmã; tu és um anjo de bondade, mas o teu sacrifício é perdido; eu não posso ser feliz, Cecília.
— Por quê?
— Porque ele te ama! murmurou Isabel.
A menina corou.
— Não digas isto, é falso.
— E bem verdade.
— Ele te disse?
— Não, mas adivinhei-o antes de ti mesma.
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— Pois te enganaste; e sabes que mais, não me fales nisto. Que me importa o que ele sente a meu respeito?
E a menina conhecendo que a emoção se apoderava dela, fugiu mas voltou da porta.
— Ah! esqueci-me de dar-te uma coisa que trouxe para ti.
Tirou a caixinha de veludo, e abrindo-a, atou o bracelete de pérolas ao braço de Isabel.
— Como te vão bem! Como assentam no teu moreno tão lindo! Ele te achará bonita!
— Este bracelete!...
Isabel teve de repente uma suspeita.
A menina percebeu; ia mentir pela primeira vez na sua vida.
— Foi meu pai que mo deu ontem; mandou vir dois irmãos: um para mim, e outro que eu lhe pedi para ti. Assim, não tens que recusar senão agasto-me contigo.
Isabel abaixou a cabeça.
— Não o tires; eu vou deitar o meu e ficaremos irmãs. Adeus, até logo. E
apinhando os dedos atirou um beijo à prima e saiu correndo.
A travessura e jovialidade do seu gênio já tinham dissipado as impressões tristes da manhã.
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IX TESTAMENTO
No momento em que Cecília deixou Isabel, D. Antônio de Mariz subia a esplanada, preocupado por algum objeto importante, que dava à sua fisionomia expressão ainda mais grave que a habitual.
O velho fidalgo avistou de longe seu filho D. Diogo e Álvaro passeando ao longo da cerca que passava no fundo da casa; fez-lhes sinal de que se aproximassem.
Os moços obedeceram prontamente, e acompanharam D. Antônio de Mariz até o seu gabinete d’armas, pequena saleta que ficava ao lado do oratório, e que nada tinha de notável, a não ser a portinha de uma escada que descia para uma espécie de cava ou adega servindo de paiol.
Na ocasião em que se abriram os alicerces da casa, os obreiros descobriram um socavão profundo talhado na pedra; D. Antônio como homem previdente, lembrando-se da necessidade que teria para o futuro de não contar senão com os seus próprios recursos, mandou aproveitar essa abóbada natural, e fazer dela um depósito que pudesse conter algumas arrobas de pólvora.
O fidalgo achara ainda uma outra grande vantagem na sua lembrança; era a tranqüilidade de sua família, cuja vida não estaria sujeita a um descuido de qualquer doméstico ou aventureiro; porque no seu gabinete d’armas ninguém entrava, senão estando ele presente.
D. Antônio sentou-se junto da mesa coberta com um couro de moscóvia e fez sinal aos dois moços para que se sentassem a seu lado.
— Tenho que falar -vos de objeto muito sério, de objeto de família, disse o fidalgo.
Chamei-vos para me ouvirdes como em uma coisa que vos interessa e a mim antes do que a todos.
D. Diogo inclinou-se diante de seu pai; Álvaro imitou-o, sentindo um sobressalto ao ouvir aquelas palavras graves e pausadas do velho fidalgo.
— Tenho sessenta anos, continuou D. Antônio; estou velho. O contato deste solo virgem do Brasil, o ar paro destes desertos, remoçou-me durante os últimos anos; mas a natureza reassume os seus direitos; e sinto que o antigo vigor cede a lei da criação que manda voltar à terra aquilo que veio da terra.
Os dois moços iam dizer alguma doce palavra como quando procuramos iludir a verdade àqueles a quem prezamos, esforçando por nos iludirmos a nós próprios.