— Que queres tu dar-lhe?
A menina compreendeu imediatamente; a afeição pouco comum que tinham a Peri, a gratidão que lhe votavam, era uma espécie de segredo entre esses dois corações; era uma planta delicada que não queriam expor ao reparo que causaria aos outros amizade tão sincera por um selvagem.
Ouvindo a pergunta de seu pai, Cecília, que neste dia tinha sofrido tantas emoções diversas, lembrou-se do que se tratava.
— Como! sempre pretendeis mandá-lo embora! exclamou ela.
— É necessário; eu te disse.
— Sim; mas pensei que depois houvésseis resolvido o contrário.
— Impossível!
— Que mal faz ele aqui?
— Sabes quanto eu o estimo; quando digo que é impossível, deves crer-me.
— Não vos agasteis!...
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— Assim não te opões?
Cecília calou-se.
— Se não queres absolutamente, não se fará; mas tua mãe sofrerá, e eu, porque lhe prometi.
— Não; a vossa palavra antes de tudo, meu pai.
Peri apareceu na porta da sala; uma vaga inquietação ressumbrava no seu rosto, quando viu-se no meio da família reunida.
A atitude era respeitosa, mas o seu porte tinha a altivez inata das organizações superiores; seus olhos grandes, negros e límpidos, percorreram o aposento e fixaram-se na fisionomia venerável do cavalheiro.
Cecília prevendo o que se ia passar tinha-se escondido por detrás de seu irmão D. Diogo.
— Peri, acreditas que D. Antônio de Mariz é teu amigo? perguntou o fidalgo.
— Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem de outra cor.
— Acreditas que D. Antônio de Mariz te estima?
— Sim; porque o disse e mostrou.
— Acreditas que D. Antônio de Mariz deseja poder pagar-te o que fizeste por ele, salvando sua filha?
— Se fosse preciso, sim.
— Pois bem, Peri; D. Antônio de Mariz, teu amigo, te pede que voltes à tua tribo.
O índio estremeceu.
— Por que pedes isto?
— Porque assim é preciso, amigo.
— Peri entende; estás cansado de dar-lhe hospitalidade!
— Não!
— Quando Peri te disse que ficava não te pediu nada; sua casa é feita de palha em cima de uma pedra; as árvores do mato lhe dão o sustento; sua roupa foi tecida por sua mãe que veio trazê-la na outra lua. Peri não te custa nada.
Cecília chorava; D. Antônio e seu filho estavam comovidos; D. Lauriana mesma parecia enternecida.
— Não digas isto, Peri! Nunca na minha casa te faltaria a menor coisa, se tu não recusasses tudo e não quisesses viver isolado na tua cabana. Mesmo agora dize o que desejas, o que te agrada, e é teu.
— Por que então mandas Peri embora?
D. Antônio não sabia o que responder; e foi obrigado a procurar um pretexto para explicar ao índio o seu procedimento: a idéia da religião, que todos os povos compreendem, pareceu-lhe a mais própria.
— Tu sabes que nós os brancos temos um Deus, que mora lá em cima, a quem amamos, respeitamos e obedecemos.
— Sim
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— Esse Deus não quer que viva no meio de nós um homem que não o adora, e não o conhece; até hoje lhe desobedecemos; agora ele manda.
— O Deus de Peri também mandava que ele ficasse com sua mãe, na sua tribo, junto dos ossos de seu pai; e Peri abandonou tudo para seguir-te.