"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » Portuguese Books » "O Guarani" José de Alencar

Add to favorite "O Guarani" José de Alencar

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

— Estás ferido? exclamou o fidalgo de repente.

Peri recuou um passo; mas D. Antônio lançando-se para ele entreabriu o talho de sua camisa: e tirou-lhe as duas pistolas da cinta, examinou-as, e viu que estavam descarregadas.

O cavalheiro depois deste exame cruzou os braços e contemplou o índio com admiração profunda.

— Peri, disse ele, o que fizeste é digno de ti; o que fazes agora é de um fidalgo.

Teu nobre coração pode bater sem envergonhar-se sobre o coração de um cavalheiro português. Tomo-vos a todos por testemunhas, que vistes um dia D.

Antônio de Mariz apertar ao seu peito um inimigo de sua raça e de sua religião, como a seu igual em nobreza e sentimentos.

O fidalgo abriu os braços e deu em Peri o abraço fraternal consagrado pelos estilos da antiga cavalaria, da qual já naquele tempo apenas restavam vagas tradições. O índio, de olhos baixos, comovido e confuso, parecia um criminoso em face do juiz.

— Vamos, Peri, disse D. Antônio, um homem não deve mentir, nem mesmo para esconder as suas boas ações. Responde-me a verdade.

— Fala.

— Quem disparou dois tiros junto ao rio, quando tua senhora estava no banho?

— Foi Peri.

— Quem atirou uma flecha que caiu junto de Cecília?

— Um Aimoré, respondeu o índio estremecendo.

— Por que a outra flecha ficou sobre o lugar onde estão os corpos dos selvagens?

Peri não respondeu.

— É escusado negares; tua ferida o diz. Para salvar tua senhora, te ofereceste aos tiros dos inimigos; depois os mataste.

Página 113

— Tu sabes tudo; Peri não é mais preciso; volta à sua tribo.

O índio lançou um último olhar à sua senhora, e caminhou para a porta

— Peri! exclamou Cecília, fica; tua senhora manda.

Depois correndo para seu pai, e sorrindo-lhe entre as lágrimas, disse com um tom suplicante:

— Não é verdade? Ele não deve partir mais. Vós não podeis mandá-lo embora, depois do que fez por mim?

— Sim! A casa onde habita um amigo dedicado como este, tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos. Ele ficará conosco, e para sempre.

Peri, trêmulo e palpitando de alegria e esperança, estava suspenso dos lábios de D. Antônio.

— Minha mulher, disse o fidalgo dirigindo-se a D. Lauriana com uma expressão solene, julgais que um homem que acaba de salvar pela segunda vez vossa filha pondo em risco a sua vida; que, despedido por nós, apesar da nossa ingratidão, a sua última palavra é uma dedicação por aqueles que o desconhecem; julgais que este homem deva sair da casa onde tantas vezes a desgraça teria entrado, se ele ai não estivera?

D. Lauriana, tirados os seus prejuízos, era uma boa senhora: e quando o seu coração se comovia, sabia compreender os sentimentos generosos. As palavras de seu marido acharam eco em sua alma.

— Não, disse ela levantando-se e dando alguns passos; Peri deve ficar, sou eu que vos peço agora esta graça, Sr. D. Antônio de Mariz; tenho também a minha dívida a pagar.

O índio beijou com respeito a mão que a mulher do fidalgo lhe estendera.

Cecília batia as mãos de contente; os dois cavalheiros sorriam, um para o outro, e compreendiam-se. O filho sentia um certo orgulho, vendo seu pai nobre, grande e generoso. O pai conhecia que seu filho o aprovava, e seguiria o exemplo que lhe dava.

Neste momento Aires Gomes apareceu no vão da porta e ficou estupefato.

O que passava era para ele uma coisa incompreensível, um enigma indecifrável para quem ignorava o que sucedera anteriormente.

Pela manhã, depois do almoço, D. Antônio de Mariz, chegando a uma janela da sala, vira uma grande nuvem negra abater-se sobre a margem do Paquequer. A quantidade dos abutres que formavam essa nuvem, indicava que o pasto era abundante; devia ser um ou muitos animais de grande corpulência.

Levado pela curiosidade natural em uma existência sempre igual e monótona, o fidalgo desceu ao rio; encontrou junto da latada de jasmineiros que servia de casa de banho a Cecília, uma pequena canoa em que atravessou para a margem oposta.

Aí descobriu os corpos dos dois selvagens que imediatamente reconheceu pertencerem à raça dos Aimorés; viu que tinham sido mortos com arma de fogo.

Nesse momento não se lembrou de coisa alguma senão de que os selvagens iam talvez atacar a sua casa, e um terrível pressentimento cerrou-lhe o coração.

D. Antônio não era supersticioso; mas não pudera eximir-se de um receio vago quando soube da morte que D. Diogo tinha feito involuntariamente e por falta de prudência; fora este o motivo por que se tinha mostrado tão severo com seu filho.

Página 114

Vendo agora o começo da realização de suas sinistras previsões, aquele receio vago que a princípio sentira, redobrou; auxiliado pela disposição de espírito em que se achava, tornou-se em forte pressentimento.

Uma voz interior parecia dizer-lhe que uma grande desgraça pesava sobre sua casa, e a existência tranqüila e feliz que até então vivera naquele ermo, ia transformar-se numa aflição que ele não sabia definir. Sob a influência desse movimento involuntário da alma, que às vezes sem motivo nos mostra a esperança ou a dor, o fidalgo voltou à casa.

Perto viu dois aventureiros a quem ordenou que fossem imediatamente enterrar os selvagens, e guardassem o maior silêncio sobre isto: não queria assustar sua mulher.

Are sens

Copyright 2023-2059 MsgBrains.Com