um condenado para a prisão; terão que passar por isso. Tais objeções são demasiado pueris para merecerem um exame mais sério. Entretanto, diremos para os tranquilizar que, no tocante à reencarnação, a doutrina espírita não é tão terrível como a julgam, e se a tivessem estudado profundamente eles não ficariam tão aterrorizados com ela; saberiam que a condição da nova existência depende deles: ela será feliz ou desgraçada conforme aquilo que fizeram neste mundo, e que eles poderão já desde esta vida se elevar tão
alto que não tenham mais que temer recair no lamaçal.
Supomos que estamos falando com pessoas que acreditam em um futuro qualquer depois da morte, e não aos que tenham o nada como perspectiva ou pretendam afogar suas almas num todo universal, sem individualidade, como os pingos de chuva no oceano — o que vem a ser quase o mesmo. Então se vocês creem num porvir qualquer, sem dúvidas não admitiriam que ele seja idêntico para todos, ou de outro modo, onde estaria a utilidade do bem? Por que se reprimir? Por que não satisfazer todas as suas paixões, todos os seus desejos, ainda que à custa dos outros, já que isso não valeria nem mais nem menos? Vocês acreditam que esse futuro será mais ou menos feliz ou desditoso de acordo com o que tivermos feito durante a vida; então vocês têm o desejo de ser tão feliz quanto possível, visto que isso há de ser pela eternidade, não? Mas, porventura, teriam a pretensão de ser um dos homens mais perfeitos que tenha existido na Terra e de ter assim o direito imediato à felicidade suprema dos eleitos? Não. Admitem assim haver homens que valem mais do que vocês e que eles têm o direito a um lugar melhor, sem por isso que vocês estejam entre os réprobos. Pois bem! Coloquem-se mentalmente por um instante nessa situação intermédia que será a vossa, pois acabaram de reconhecer isso, e imaginem que alguém venha lhes dizer: Vocês sofrem, não são tão felizes quanto poderiam ser, ao passo que têm diante de vocês seres que gozam de uma completa prosperidade; querem trocar vossa posição com a deles? — Certamente, dirão; o que devemos fazer? — Quase nada; recomeçar o que fizeram malfeito e tratar de fazer melhor. — Vocês hesitariam em aceitar, ainda que ao preço de muitas existências de provas?
Façamos uma comparação mais comum: se a um homem que, sem estar na pior das misérias, ainda assim experimenta privações decorrentes da falta de
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seus recursos, viesse alguém a dizer: “Aqui está uma riqueza imensa, tu podes aproveitá-la e para isso é necessário trabalhar arduamente durante um minuto”. Mesmo que ele fosse o mais preguiçoso da Terra, diria sem hesitar:
“Trabalhemos um minuto, dois minutos, uma hora, um dia, se for preciso. O
que importa isso, se for para findar meus dias na fartura?” Ora, o que é a duração da vida corpórea em relação à eternidade? Menos que um minuto, menos que um segundo.
Temos escutado fazerem esse raciocínio: Deus, que é soberanamente bom, não pode impor ao homem recomeçar uma série de misérias e de tribulações. Por acaso essas pessoas acharão que há mais bondade em condenar o homem a um sofrimento perpetuamente por alguns instantes de erro, do que em lhe propiciar os meios de reparar suas faltas? “Dois fabricantes tinham cada qual um operário que podia aspirar a se tornar sócio do patrão. Ora, aconteceu que esses dois operários certa vez empregaram muito mal sua jornada de trabalho e mereceram ser demitidos. Um dos dois fabricantes despede seu empregado, malgrado suas súplicas, e este, não tendo encontrado mais trabalho, morreu de miséria. O outro patrão disse ao seu operário: “Tu perdeste um dia; deves-me uma compensação por isso; executaste mal o teu trabalho e me deves a reparação. Permito-te que o recomece; trata de executá-lo bem e te conservarei, e poderás continuar a aspirar à posição superior que te prometi.” Será preciso perguntarmos qual dos dois fabricantes foi o mais humanitário? Deus — a própria misericórdia
— seria mais insensível do que um homem? A ideia de que o nosso destino fique para sempre determinado por alguns anos de provações, ainda mesmo quando não tenha dependido de nós alcançarmos a perfeição na Terra, tem qualquer coisa de lamentável, enquanto a ideia oposta é visivelmente consoladora: ela nos dá esperança. Assim, sem nos pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das existências, sem admitirmos uma hipótese mais que a outra, declaramos que, se tivéssemos escolha, não há ninguém que preferiria um julgamento sem apelação. Disse um filósofo que se Deus não existisse seria preciso inventá-lo para a felicidade do gênero humano23; outro 23 Célebre frase atribuída ao filósofo francês Voltaire (1694-1778). — N. T.
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tanto se poderia dizer da pluralidade das existências. Mas, como temos dito, Deus não nos pede permissão para isso; ele não consulta nosso gosto; ou a pluralidade das existências existe ou não existe. Vejamos de que lado estão as probabilidades e tomemos a coisa de outro ponto de vista, ainda fazendo abstração do ensinamento dos Espíritos e unicamente como estudo filosófico.
Se não há reencarnação, então só há uma existência corporal, evidentemente. Se a nossa atual existência corpórea for a única, a alma de cada indivíduo terá sido criada no seu nascimento, a menos que se admita a anterioridade da alma — caso em que caberia perguntar o que era a alma antes do nascimento e se esse estado não constituía uma existência sob uma forma qualquer. Não há meio termo: ou a alma existia ou ela não existia antes do corpo; se existia, qual a sua situação? Tinha ou não consciência de si mesma? Se não tinha, é quase como se não existisse; se tinha individualidade, ela era progressiva ou estacionária; num e noutro caso, a que grau ela teria chegado ao tomar o corpo? Admitindo — de acordo com a crença vulgar —
que a alma nasce com o corpo, ou — o que vem a ser o mesmo — que anteriormente à sua encarnação ela não tem senão faculdades nulas, nós colocamos as seguintes questões:
1. Por que a alma mostra aptidões tão diversas e independentes das ideias adquiridas pela educação?
2. De onde vem a aptidão anormal de certas crianças de pouco idade para tal arte ou tal ciência, enquanto outras permanecem inferiores ou medíocres durante toda a sua vida?
3. De onde vêm em alguns as ideias inatas ou intuitivas que não existem noutros?
4. De onde vêm em certas crianças esses instintos precoces para os vícios ou para as virtudes, esses sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza que contrastam com o ambiente no qual elas nasceram?
5. Por que, sem considerar a educação, certos indivíduos são mais adiantados do que outros?
6. Por que há selvagens e indivíduos civilizados? Se vocês tomarem um
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menino hotentote24 recém-nascido e o educarem nos nossos liceus mais renomados, algum dia farão dele um Laplace25 ou um Newton26?
Indagamos qual é a filosofia ou a teosofia27 que pode resolver esses problemas? Ou as almas no seu nascimento são iguais ou elas são desiguais —
disso não resta dúvidas. Se elas são iguais, por que essas aptidões tão diversas? Dirão que isso depende do organismo? Mas então essa seria a doutrina mais monstruosa e a mais imoral. O homem não seria mais do que uma máquina, o joguete da matéria; ele deixaria de ter a responsabilidade de seus atos, já que poderia atribuir tudo às suas imperfeições físicas. Se as almas são desiguais, é que Deus as criou assim; nesse caso, porém, por que essa superioridade inata concedida a algumas delas? Essa parcialidade estaria conforme a justiça de Deus e ao igual amor que ele traz para todas as suas criaturas?
Vamos admitir, ao contrário, uma série de existências anteriores progressivas e tudo fica explicado. Ao nascerem, os indivíduos trazem a intuição do que adquiriram; eles são mais ou menos adiantados mediante o número de existências que percorreram, mediante estejam mais ou menos afastados do ponto de partida: exatamente como numa reunião de pessoas de todas as idades, cada um terá desenvolvimento proporcionado ao número de anos que tenha vivido; para a vida da alma, as existências sucessivas serão o que os anos representam para a vida do corpo. Reúnam um dia mil indivíduos, de um a oitenta anos; suponham que um véu encubra todos os dias precedentes e que, na vossa ignorância, vocês acreditem então que todos nasceram no mesmo dia: naturalmente, vocês se perguntarão como é que uns são grandes e outros pequenos, uns velhos e outros jovens, alguns instruídos 24 Hotentote: relativo a um povo do Sudoeste da África, frequentemente tomado como exemplo de uma raça muito primitiva em comparação com os europeus da época (século XIX). — N. T.
25 Pierre Simon Laplace (1749-1827): astrônomo, físico e matemático francês. — N. T.
26 Isaac Newton (1642-1727): reconhecido cientista inglês. — N. T.
27 Teosofia (do grego: theos = “deus” + sophia = “sabedoria”) significa aqui, tal como essa palavra era usada até então, qualquer doutrina que, de uma maneira geral, se proponha a entender a natureza divina, e, portanto, não é uma referência direta ao movimento ocultista criado em 1875 (duas décadas depois do lançamento de O Livro dos Espíritos) em torno da Sociedade Teosófica de Helena Blavatsky. — N. T.
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e outros ainda ignorantes. Se, porém, dissipando-se a nuvem que lhes oculta o passado, vocês vierem a saber que todos têm vivido por um tempo mais ou menos longo, tudo vos ficará explicado. Deus, na sua justiça, não poderia ter criado certas almas mais perfeitas e outras menos perfeitas. Sem embargo, com a pluralidade das existências, a desigualdade que vemos não tem nada de contrário à mais rigorosa equidade: é que nós só vemos o presente e não o passado. Esse raciocínio baseia-se sobre algum sistema, uma suposição gratuita? Não, nós partimos de um fato patente, incontestável: a desigualdade das aptidões e do desenvolvimento intelectual e moral, e verificamos que esse fato não pode ser explicado por nenhuma das teorias que temos em curso, ao passo que a sua explicação é simples, natural e lógica por uma outra teoria.
Seria racional preferirmos aquela que não explica nada a esta que explica?
Com respeito à sexta interrogação, alguns dirão sem dúvidas que o hotentote é de uma raça inferior: então perguntaremos então se o hotentote é ou não um homem. Se ele é um homem, por que Deus privou a ele e à sua raça dos privilégios concedidos à raça caucasiana? Se não for um homem, por que tentar fazê-lo cristão? A doutrina espírita tem mais amplitude do que tudo isso; segundo ela, não há espécies diversas de homens, há tão somente homens cujos espírito está mais ou menos atrasado, porém suscetível de progredir: este princípio não está mais em harmonia com a justiça de Deus?
Acabamos de ver a alma no seu passado e no seu presente; se a considerarmos quanto ao seu futuro, encontraremos as mesmas dificuldades.
1. Se a nossa existência atual, unicamente, deve decidir a nossa sorte posterior, qual será a respectiva posição do selvagem e do homem civilizado na vida futura? Ficarão no mesmo patamar ou estarão distanciados na soma da felicidade eterna?
2. O homem que tem trabalhado por toda a sua vida a fim de se melhorar ocupará a mesma categoria daquele que permaneceu inferior, não por culpa própria, mas porque não teve tempo e nem possibilidade de se melhorar?
3. O indivíduo que praticou o mal, por não ter podido se esclarecer, será passível de um estado de coisas que não dependeu dele?
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4. Trabalha-se para esclarecer, moralizar e civilizar os homens, mas para cada um que se esclarece há milhões que morrem diariamente antes que a luz tenha chegado até eles: qual é o destino destes últimos? Serão tratados como infames? No caso contrário, o que eles teriam feito para merecer estar na mesma faixa que os outros?
5. Qual é a destinação das crianças que morrem em tenra idade, antes de terem podido fazer o bem e o mal? Se elas ficarem entre os eleitos, por que esse favor, sem terem feito nada para merecê-lo? Por qual privilégio ficariam isentas das tribulações da vida?
Haverá alguma doutrina capaz de resolver essas questões? Admitamos as existências consecutivas e tudo se explicará conformemente a justiça de Deus. O que se não pôde fazer numa existência faz-se em outra. Assim é que ninguém escapa à lei do progresso, que cada um será recompensado segundo o seu merecimento real e que ninguém fica excluído da felicidade suprema, à qual se pode pretender, quaisquer que sejam os obstáculos encontrados no seu caminho.