Os sonhos são o produto da emancipação da alma tornada mais independente pela suspensão da vida ativa e de relação. Daí uma espécie de clarividência indefinida que se estende aos lugares mais distantes ou que nós jamais vimos, e algumas vezes até a outros mundos. Daí também a lembrança que traz de volta à memória os eventos ocorridos na existência presente ou em existências anteriores; a estranheza das imagens curiosas de que se passa ou se passou nos mundos desconhecidos, entremeados de coisas do mundo atual, formam esses conjuntos bizarros e confusos que parecem não ter nenhum sentido nem conexão.
A incoerência dos sonhos ainda se explica pelas lacunas que produz a recordação incompleta daquilo que nos apareceu em sonho. Tal seria como uma narração da qual frases ou trechos tivessem sido truncadas ao acaso: os fragmentos que restassem, sendo reunidos, perderiam toda a significação racional.
403. Por que nem sempre nos lembramos dos sonhos?
“Aquilo que chamam sono é só o repouso do corpo, visto que o Espírito está sempre em atividade; nisso, ele recobra um pouco da sua liberdade e se corresponde com aqueles que lhe são queridos — seja neste mundo, seja em outros. Mas como o corpo é uma matéria pesada e grosseira, este dificilmente conserva as impressões que o Espírito recebeu, porque o Espírito não percebeu pelos órgãos corporais.”
404. Que se deve pensar dos significados atribuídos aos sonhos?
“Os sonhos não são verdadeiros como os ledores da sorte interpretam, pois seria absurdo acreditar que sonhar com tal coisa anunciaria tal outra. São verdadeiros no sentido de que apresentam imagens reais para o Espírito, porém que, frequentemente, não têm nenhuma relação com o que se passa na vida corporal; muitas vezes também, como temos dito, trata-se de uma recordação; enfim, algumas vezes pode ser um pressentimento do futuro, se Deus o permite, ou a visão do que está acontecendo no mesmo momento em outro lugar ao qual a alma está se transportando. Vocês não têm tantos exemplos de pessoas aparecendo em sonho e vindo contar a seus parentes e amigos o que está se passando com elas? Que são essas aparições senão a
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alma ou o Espírito dessas pessoas que vêm se comunicar com a vossa alma?
Quando vocês têm a certeza de que aquilo que viram realmente aconteceu, isso não é uma prova que a imaginação nada tem com isso, sobretudo se esse fato não tinha passado pelo vosso pensamento enquanto acordado?”
405. Com frequência se vê em sonho coisas que parecem pressentimentos, mas que não se realizam. De onde vêm essas coisas?
“Pode ser que se realizem para o Espírito, senão para o corpo. Quer dizer que o Espírito viu aquilo que desejava, porque vai procurá-la. É preciso não esquecer que durante o sono a alma está sempre mais ou menos sob a influência da matéria e que, por conseguinte, nunca se liberta completamente das ideias terrestres; disso resulta que as preocupações da vigília podem dar àquilo que se vê a aparência do que se deseja, ou do que se teme; é a isso o que realmente podemos chamar um efeito da imaginação. Quando se está seriamente preocupado com uma ideia, atribui-se a ela tudo o que se vê.”
406. Quando vemos em sonho pessoas vivas, que conhecemos bem, a praticarem atos nos quais elas absolutamente não pensam, isso não é efeito de pura imaginação?
“O que você sabe sobre o que elas absolutamente não pensam? O
Espírito delas pode vir visitar o teu, como o teu pode visitar o delas, e nem sempre você sabe no que ele pensa. E assim, frequentemente, vocês aplicam às pessoas que conhecem — e de acordo com vossos desejos — o que se passou ou está se passando em outras existências.”
407. É necessário o sono completo para a emancipação do Espírito?
“Não, o Espírito recobra sua liberdade quando os sentidos se entorpecem; para se emancipar, ele se aproveita de todos os instantes de trégua que o corpo lhe concede. Desde que haja prostração das forças vitais, o Espírito se desprende, e quanto mais fraco for o corpo, mais o Espírito fica livre.”
É assim que a sonolência, ou um simples entorpecimento dos sentidos apresenta muitas vezes as mesmas imagens do sono.
223 – O Livro dos Espíritos
408. Algumas vezes parece que ouvimos em nós mesmos palavras pronunciadas distintamente e que não têm nenhum nexo com o que nos preocupa. De onde vem isso?
“Sim, e até mesmo frases inteiras, principalmente quando os sentidos começam a se entorpecer. Algumas vezes é um eco fraco de um Espírito que quer se comunicar contigo.”
409. Doutras vezes, num estado que ainda não é bem o do adormecimento, quando estamos com os olhos fechados, vemos imagens distintas, figuras das quais captamos os mínimos detalhes. É um efeito da visão ou da imaginação?
“Estando o corpo entorpecido, o Espírito procura se desprender: ele se transporta e vê; se o sono fosse completo, isso seria um sonho.”
410. Às vezes durante o sono ou adormecimento, temos ideias que nos parecem muito boas e que, apesar dos esforços que façamos para retê-las, apagam-se da memória. Donde vêm essas ideias?
“Elas são o resultado da liberdade do Espírito que se emancipa e que desfruta melhor das suas faculdades durante esse momento. Também são conselhos que frequentemente outros Espíritos dão.”
410-a. — Para que servem essas ideias e esses conselhos já que perdemos a lembrança deles e não podemos aproveitá-los?
“Essas ideias pertencem por vezes mais ao mundo dos Espíritos do que ao mundo corporal. Porém o mais frequente é que, se o corpo esquece, o Espírito se lembra, e a ideia retorna na hora necessária como uma inspiração de momento.”
411. O Espírito encarnado, nos momentos em que está desprendido da matéria e agindo como Espírito, ele sabe a época da sua morte?
“Muitas vezes ele a pressente; às vezes tem nítida consciência dela, e é isso que, em estado de vigília, lhe dá a sua intuição. Por isso é que algumas pessoas frequentemente preveem sua morte com uma grande exatidão.”
412. A atividade do Espírito durante o repouso ou o sono do corpo pode
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causar fatiga a este último?
“Pode sim, pois o Espírito está ligado ao corpo, qual o balão preso ao poste. Ora, do mesmo modo como as sacudidas do balão abalam o poste, a atividade do Espírito reage sobre o corpo e pode lhe causar fatiga.”
Visitas espíritas entre pessoas vivas
413. Pelo princípio da emancipação da alma durante o sono, parece que temos uma dupla existência simultaneamente: a do corpo, que nos dá a vida de relação exterior; e a da alma, que nos proporciona a vida de relação oculta.
Isso está correto?
“No estado de emancipação a vida do corpo cede à vida da alma, contudo, propriamente falando, não há duas existências: são antes duas fases da mesma existência, pois o homem não vive duplamente.”
414. Duas pessoas que se conhecem podem se visitar durante o sono?
“Certamente, e muitos daqueles que acreditam não se conhecerem reúnem-se e se falam. Sem suspeitar disso, você pode ter amigos em outro país. O fato de ir ver durante o sono amigos, parentes, conhecidos, pessoas que podem lhe ser úteis, é tão frequente que vocês o fazem quase todas as noites.”
415. Qual pode ser a utilidade dessas visitas noturnas se não as recordamos?
“Normalmente fica uma intuição dessas visitas ao acordar, e com frequência essa é a origem de certas ideias que vêm espontaneamente, sem que se possa explicá-las, e que não são outras senão aquelas que se adquire nessas conversas.”