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Então a pobre senhora nem sequer pode ir às lojas, aos seus arranjos!

— exclamou Sebastião. — A Gertrudes é uma desavergonhada, e nem sei como a tia Joana consente que ela ponha aqui os pés. Vir com esses mexericos!. .

Cruzes! Olha o destempero! — replicou muito escandalizada tia Joana.

— Oh, menino, realmente. . A pobre mulher disse o que ouviu na rua! Que ela até a defende; até ela é que a defende! Até se esteve a queixar que se fala!

Que se fala! Boa! — E a tia Joana saiu, resmungando: — Olha o destempero, credo!

Sebastião chamou-a, aplacou-a:

Mas quem fala, tia Joana?

Quem? — E muito enfaticamente: — Toda a rua! Toda a rua! Toda a rua!

Sebastião ficou aniquilado. Toda a rua! Pudera! Se ela agora se punha a sair os dias; uma senhora, que quando estava Jorge não saía do buraco! A vizinhança que murmurara das visitas do outro naturalmente começava a comentar as saídas dela! Estava-se a desacreditar! E ele não podia fazer nada! Ir adverti-ta?

Ter outra cena? Não podia.

Procurou-a. Não lhe queria decerto tocar em nada; ia só vê-la. Não estava.

Voltou dai a dois dias. Juliana veio-lhe dizer à cancela, com o seu sorriso amarelado: "Foi-se agora mesmo, há um instantinho. Ainda a apanha à Patriarcal". Enfim, um dia encontrou-a ao princípio da Rua de São Roque.

Luísa pareceu muito contente no ver: — porque se tinha demorado tanto em Almada? Que deserção!

Trazia carpinteiros; era necessário vigiar as obras. E ela?

Bem. Um bocado aborrecida. O Jorge diz que ainda se demora. Tenho do muito só. Nem Julião, nem Conselheiro; ninguém. A D. Felicidade é que aparecido às vezes de fugida. Está agora sempre metida na Encarnação.. Isto devota! — E riu.

Então onde ia?

A umas comprazitas, à modista depois... — E apareça agora, Sebastião, hem?

Hei de aparecer.

À noite. Estou tão só! Tenho tocado muito, e o que me vale é o piano!

Nessa mesma tarde Sebastião recebeu uma carta de Jorge.

Tens visto a Luísa? Estive quase com cuidado, porque estive mais de cinco dias sem carta dela. De resto está preguiçosa como uma freira; quando escreve são quatro linhas porque está o correio a partir. Vai dizer ao correio que espere, que diabo! Queixa-se de se aborrecer, de estar só, que todos a abandonaram; que tem vivido como num deserto. Vê se lhe vais fazer companhia, coitada, etc.

No dia seguinte ao anoitecer foi à casa dela. Apareceu-lhe muito vermelha, com os olhos estremunhados, de roupão branco. Tinha chegado muito cansada de fora; tinha-lhe dado o sono depois de jantar; adormecera sobre a poltrona. . Que havia de novo? E bocejava.

Falaram das obras de Almada, do Conselheiro, de Julião; e ficaram calados.

Havia um constrangimento.

Luísa então acendeu as velas no piano, mostrou-lhe a nova música que estudava, a Medgé de Gounod; mas havia uma passagem em que se embrulhava sempre; pediu a Sebastião que a tocasse, e junto do piano,

batendo o compasso com o pé, acompanhava baixo a melodia, a que a execução de Sebastião dava um encanto penetrante. Quis tentar depois, mas enganou-se, zangou-se; atirou a música para o lado, veio sentar-se no sofá, dizendo:

Quase nunca toco! Estão-se-me a enferrujar os dedos!. .

Sebastião não se atrevia a perguntar pelo primo Basílio. Luísa não lhe pronunciou sequer o nome. E Sebastião, vendo naquela reserva uma diminuição de confiança ou um resto persistente de despeito, disse que tinha de ir à Associação Geral da Agricultura; e saiu muito desconsolado.

Cada dia que se seguiu trouxe-lhe a sua inquietação diferente. As vezes era a tia Joana que lhe dizia à tarde: A Luisinha lá saiu hoje outra vez! Por este calor, até pode apanhar alguma! Credo!" Outras, era o conciliábulo dos vizinhos, que avistava de longe, e que decerto estavam a cortar na pele da pobre senhora!

Parecia-lhe tudo aquilo exatamente a "Ária da calúnia" no Barbeiro de Sevilha: a calúnia ao princípio leve como o frémito das asas de um pássaro, subindo num crescendo aterrador até estalar como um trovão!

Dava agora voltas para não passar na rua, diante do Paula e da estanqueira; tinha vergonha deles! Encontrara o Teixeira Azevedo, que lhe perguntara:

Então o Jorge quando vem? Que diabo! O rapaz fica por lá!

E aquela observação trivial aterrou-o.

Enfim, um dia, mais apoquentado, foi procurar Julião. Encontrou-o no seu quarto andar, em mangas de camisa e em chinelas, enxovalhado e esguedelhado rodeado de papelada, com uma chocolateirinha de café ao pé, trabalhando. O soalho negro estava cheio de pontas de cigarros; ao canto estava embrulhada roupa suja; sobre a cama desfeita havia livros abertos; — e um cheiro relentado saía do desmazelo das coisas. A janela de peitoril dava para o saguão, de onde vinha o cantar estridente de uma criada, e o ruído areado do esfregar de tachos.

Julião, apenas ele entrou, ergueu-se, espreguiçou-se, enrolou um cigarro, e declarou que estava a trabalhar desde às sete!. . Hem? Era bonito! Para que soubesse o Sr. Sebastião!

De resto chegaste a propósito. Estava para mandar à tua casa. . Devia receber aí um dinheiro e não veio. Dá cá uma libra.

E imediatamente começou a falar da tese. A coisa saía!

Leu-lhe parágrafos do prólogo com uma deleitação paternal, e, muito satisfeito, na abundância de confiança que dá a excitação do trabalho, com grandes passadas pelo quarto:

Hei de lhes mostrar que ainda há portugueses em Portugal, Sebastião!

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